A “esquecida” HQ de Superman e Batman que alerta sobre graves problemáticas da atualidade
- Maicon Epifânio
- 29 de jul.
- 6 min de leitura
Atualizado: 30 de jul.

Publicado originalmente em “Superman/Batman” 8 ao 13 (maio a outubro de 2004), o enredo “A Supergirl de Krypton” foi a empreitada do roteirista Jeph Loeb para reintroduzir Kara Zor-El no Universo DC. Após o desfecho de Supergirl em “Crise nas Infinitas Terras” (1985 a 1986), Superman de fato foi “O Último Filho de Krypton” por muitos anos. Eventualmente, a editora viu a necessidade de resgatar a personagem e o editor-executivo Dan Didio encarregou Jeph Loeb dessa importante tarefa.

Embora a trama de seis partes seja dedicada à Kara, os protagonistas são Superman e Batman. Afinal, o texto inteligente do roteirista alterna entre as narrações de Clark Kent e as narrações de Bruce Wayne. A chegada de uma suposta segunda sobrevivente de Krypton, junto de um meteoro de Kryptonita, abala as estruturas da relação entre eles. De um lado, Superman confia na história fragmentada contada pela garota. Do outro, Batman teme que uma trama perigosa esteja por trás daquilo.
Logo na primeira parte da história, o leitor se depara com as opiniões divergentes que os dois heróis têm a respeito de um deles. “Sei que tenho minha mulher, meus pais e até amigos… Mas estou só. O que houve é que… A chuva de meteoros é uma lembrança dolorosa… De que eu não nasci na Terra. Eu sou o último filho de Krypton. Um alien…”: reflete Clark, antes da chegada de sua suposta prima. Já Batman apresenta outra perspectiva sobre como o mundo enxerga seu amigo: “Ele não está nada feliz. Não posso culpá-lo. Se fosse o contrário, e eu estivesse de quarentena na caverna, estaria do mesmo jeito. Creio que não exista ninguém em todo o planeta capaz de mobilizar tanta gente. E isso diz muito sobre o quanto sua vida e sua influência são marcantes”.
A solidão do último sobrevivente

Por quase 20 anos de histórias do Universo DC pós-Crise (embora seja importante salientar que o tempo na cronologia da editora passa mais devagar em relação à nossa realidade), Superman se viu só. O alicerce da criação de seus pais adotivos nunca foi negado por ele, mas ser o último sobrevivente de toda uma cultura é uma sensação que poucas pessoas podem expressar como é.
Clark sempre foi um homem tentando ser digno de “ser humano”, sempre fazendo muito mais do que de fato precisava fazer. Isso lhe impedia de ter a noção exata do quanto o mundo (ao menos boa parte dele) o ama. Essa solidão também funcionava como um alerta de que, no fundo, jamais seria uma “parte legítima” de uma sociedade… Até conhecer Kara Zor-El.

Por outro lado, mesmo sendo de poucas palavras até entre os amigos, Batman silenciosamente enxerga em Superman um homem admirável e admirado: “E em apenas um instante, ele mostra novamente porque é um modelo para tantos. Há quem o ache ultrapassado, o escoteiro que coloca seu altruísmo na frente de tudo… Essas pessoas não conseguem ver o que ele realmente é… Um herói”. É curioso, inclusive, como esse trecho da narração fala tanto sobre os civis fictícios quanto sobre os da nossa vida real, tanto os daquela época quanto os de agora, em 2025. Testemunhamos isso quando certas críticas foram tecidas contra a “gentileza inocente” da nova versão do Superman nos cinemas, vivida por David Corenswet (mas isso é papo para outro texto!).

Ao encontrar Kara, Superman foca o seu pensamento no fato de não estar mais sozinho enquanto Batman a enxerga como uma ameaça em potencial. Na parte 2 da trama, Clark compreende a situação como “uma história de amor. Não é uma história de amor entre um homem e uma mulher. É mais a história de uma família que aprende a amar. Não se conta mais esse tipo de história. Ele [Batman] vê isso como um filme policial. Todas as suas desconfianças estão à flor da pele”. Já o Cavaleiro das Trevas pensa que “é uma história policial. Não é um conto policial tradicional, onde se desvenda um crime ou se encontra um corpo. Ainda. Mas é o tipo de história que eu conheço bem. Ele vê o que está acontecendo como uma novela… O caipira que encontrou um parente distante”.
Mais adiante, no mesmo capítulo, a narração de Loeb acrescenta mais camadas ao choque de perspectivas dos heróis. “Clark é uma inspiração para tantos. Contudo, afora Superboy e o cão [Krypto], ele nunca teve de se responsabilizar por alguém tão jovem”: reflete Batman. “Ok, eu admito… Não sou pai, mas Bruce criou Dick e agora Tim. Só que a morte de Jason Todd deve ter afetado seu desejo de criar outra criança. É como eu vejo Kara… Uma criança que precisa de nossa ajuda. Entendo isso melhor do que qualquer um”: pondera Superman.
As consequências alarmantes das mudanças no padrão de leitura dos brasileiros

A genialidade do texto do roteirista, que também faz um belo trabalho nos momentos de diálogos, se mostra através da narração dividida entre os dois protagonistas. Jeph Loeb, de modo sutil, fala com o leitor que duas pessoas com visões de mundo relativamente diferentes não apenas podem coexistir como podem ser grandes amigas. Tanto Batman quanto Superman, cada um ao seu modo, desejam o melhor para o mundo e para Supergirl, ainda que discordem em métodos. O diálogo pode e deve existir na grande maioria das situações.
É curioso como essa ideia do autor, transcrita para uma história de 2004, esteja cada vez mais distante das práticas humanas da atualidade. Em maio de 2025, o Jornal UFG publicou através do site do Adufg (Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás) uma matéria sobre os efeitos da queda do hábito de leitura dos brasileiros. Segundo a publicação, a professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás Neuda Lago aponta que a sociedade hiperconectada promove a redução do tempo dedicado à leitura em prol de privilegiar múltiplas atividades simultâneas.

O mais alarmante, no entanto, segundo a matéria, está nas consequências da queda no padrão de leitura. Neuda diz que ler vai além do lazer e é fundamental para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. A ausência de leitura pode impactar negativamente a criatividade, a concentração e o pensamento crítico das gerações mais novas. Além disso, o consumo acelerado de conteúdos fragmentados (como vídeos e postagens curtas) favorece uma leitura superficial e prejudica o desenvolvimento de um pensamento crítico elaborado.
É bem provável, por exemplo, que o leitor deste texto pouco se interessaria por um assunto tão importante sem a conexão com os super-heróis da DC Comics. Os algoritmos das redes sociais e os mecanismos das relações digitais, inevitavelmente, favorecem conteúdos mais breves e com maior apelo popular imediato. Por fim, o texto do quadrinho de 2004 serve não apenas como uma forma de conhecer melhor as visões de mundo de dois dos seus três heróis fundamentais, como também de lembrete da importância de não conviver apenas com aqueles que pensam semelhante.
No final da história, tanto Superman quanto Batman crescem enquanto indivíduos e aprendem mais sobre si mesmos e sobre o outro. O que estamos aprendendo quando silenciamos ou bloqueamos o “diferente” nas redes sociais? O que estamos desenvolvendo ao consumirmos conteúdos cada vez mais efêmeros e pouco aprofundados? Qual será o futuro de uma sociedade que sacrifica cada vez mais sua capacidade de interpretação, argumentação e diálogo em prol da agilidade do mundo digital? Todas essas questões são difíceis de se responder, mas é irônico como uma história em quadrinhos de duas décadas atrás nos ensina muito mais sobre tudo isso do que a maior parte dos conteúdos rápidos “viralizados” dos dias atuais.

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