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Thor, Friends e as normatizações do romance na cultura pop



Pôster do filme Thor: Amor e Trovão apresentando o personagem-título, além de Jane Foster, Valquíria, Korg e o antagonista Carniceiro dos Deuses

 

Durante a minha infância, eu possuía alguns gostos peculiarmente opostos. Apreciava boas histórias de horror, mas também me encantava com os enredos de romance focados em emotividade. Algo aconteceu durante o meu caminho até a vida adulta porque eu passei a olhar com desconfiança para ambos os gêneros. Hoje em dia, eu continuo consumindo tanto tramas sombrias que desafiam o psicológico quanto obras suaves que buscam capturar pela emoção. A grande questão, provavelmente, é que aprendi a perceber com nitidez as convenções de gênero.

A mídia sempre teve responsabilidade na narrativa romantizada do amor que é presente em nossa sociedade há tempos, embora não tenha sido ela quem a criou. Assim como todas as outras normatizações sociais, os veículos midiáticos (de entretenimento, de formação de opinião e de informação) reproduzem esses padrões para permanecerem relevantes e continuarem existindo. Estar realizando um Trabalho de Conclusão de Curso que envolve o gênero jornalístico revista me ajuda a compreender como a mídia não é facilmente categorizada como heroína ou vilã quando estamos falando de estereótipos e discursos hegemônicos. O cinema não criou os papéis de gênero, mas certamente se beneficiou deles por muitas décadas para produzir filmes visando o lucro.






Natalie Portman como Jane Foster e Chris Hemsworth como Thor

Durante esta semana, assisti ao filme Thor: Amor e Trovão (Thor: Love and Thunder, no original) e saí da sala de cinema pensando sobre como as convenções citadas anteriormente estão, enfim, mudando. A nova aventura do deus do trovão, certamente, se afasta com fôlego do gênero horror, mas flerta bastante com o romance. Os filmes de super-heróis sempre demonstraram um talento como “gêneros híbridos”, combinando elementos de romance, ação, comédia e eventualmente o horror, além de várias outras possibilidades. Penso que essa característica volátil é um dos fatores responsáveis pelo sucesso atual dessas obras, mesmo quando nem sempre estão revolucionando o cinema.

O filme protagonizado por Chris Hemsworth não é uma obra inesquecível, mas cumpre o seu papel como entretenimento. Porém, com um olhar mais atento, você encontra mais do que somente uma trilha sonora de qualidade, momentos de ação interessantes e uma trama divertida. De certo modo, o filme se propôs como uma história de amor, mas não da maneira tão tradicional que já vimos tantas vezes.

Você, por acaso, já assistiu a alguma das várias adaptações cinematográficas de livros do autor estadunidense Nicholas Sparks? Um Amor para Recordar (A Walk to Remember, de 2002), por exemplo, é um filme que me arrancou muitas lágrimas quando assisti pela primeira vez. Era, naquela minha época de criança ou adolescente (infelizmente não posso precisar a minha idade quando vi a obra), um dos meus filmes favoritos. Eu achava que o amor verdadeiro envolvia sacrifício, sinceridade e, eventualmente, uma história de sofrimento. O curioso é que, quando você procura outra adaptação das obras de Sparks, ou mesmo os livros que ele escreve, encontra os mesmos elementos de sempre: um homem e uma mulher, geralmente brancos, profundamente apaixonados, mas separados por alguma doença ou tragédia. Diversas outras histórias de amor usaram, ao longo dos anos, atributos muito similares para apresentar os famosos romances “água com açúcar". Qualquer um pode gostar desse tipo de trama, é claro, mas também é fácil vender um enredo quando o autor faz uso de clichês genéricos ligados aos padrões tradicionais.




O casal de protagonistas do filme "Um Amor para Recordar" (A Walk to Remember, 2002)

Os clichês e as convenções não necessariamente são ruins, mas tudo o que existe no campo simbólico, de uma maneira ou de outra, afeta as percepções das pessoas e suas visões de mundo. Posso citar, como exemplo, o sitcom Friends, que durou incríveis 10 temporadas e, até hoje, carrega uma legião de fãs. Falar sobre seu desfecho não é spoiler nenhum, afinal, e podemos discutir sobre a conclusão dada para a personagem Rachel Green. Interpretada por Jeniffer Aniston, ela era uma dos seis protagonistas da série e acompanhamos a sua evolução ao longo das temporadas. De rica mimada à grande profissional da moda, Rachel encontrou uma grande oportunidade para sua carreira no fim da última temporada. No entanto, ela optou pelo “amor” quando abandonou o seu sonho para ficar com seu interesse romântico, Ross Geller.

Nem preciso destrinchar todas as problemáticas relacionadas aos comportamentos de Ross durante a série: primeiro porque não é o foco deste texto e segundo porque é algo que rende outro tipo de discussão. A questão é que uma mulher com uma vida profissional promissora abriu mão do seu sucesso para fazer a mesma "escolha" que a sociedade sempre impôs para todas as mulheres.

Evidentemente, qualquer mulher pode ser bem-sucedida e amar simultaneamente, não é essa a questão. O problema é quando diversas obras reforçam que a busca pelo sucesso do homem é natural, mas essa busca, se feminina, deve vir somente depois do matrimônio ou maternidade. Por quê? Quantas vezes, filmes, séries, novelas e outros tipos de produtos culturais trataram de forma positiva personagens masculinos independentes, calculistas, objetivos e ambiciosos, mas vilanizaram os mesmos adjetivos nas mulheres? O público em muitos momentos faz uma distinção e é por isso que determinadas críticas a filmes protagonizados por mulheres, eventualmente, parecem se preocupar muito mais com o fato de não ser um homem em papel central do que com a qualidade da história contada. E mais do que isso: como as mulheres da vida real foram influenciadas com um discurso que sempre as empurrou para um “final feliz com o príncipe encantado”?




Jeniffer Aniston caracterizada como Rachel Green na série Friends

Por isso, voltemos à Thor: Amor e Trovão. Jane Foster, personagem que havia sido introduzida anteriormente no Universo Cinematográfico da Marvel, reapareceu como uma mulher bem-sucedida que luta contra um câncer. De maneira bem similar ao que acontece nos quadrinhos, Jane recebe o chamado do lendário martelo Mjölnir e se torna a Poderosa Thor. Em sua forma heroica, ela possui vitalidade, poder e plenitude, mas a sua forma mortal permanece decadente. Mais do que isso: assim como ocorre nas HQs, o uso desse poder tem consequências. No fim das contas, a doutora Foster tem que escolher entre duas opções com uma dualidade bem similar às opções que Rachel Green possuía na série Friends. Uma dualidade recorrentemente presente na jornada de personagens femininas na cultura pop: escolher o amor ou a luta por algo que deseja.

A decisão da personagem e como ela se dá diz muito sobre como o discurso midiático sobre mulheres está se transformando ao longo dos anos. Cada vez mais, a imagem da mãe e esposa como figura feminina ideal está sendo desconstruída para que as mulheres reais se inspirem rumo ao que realmente buscam. Não há nada de errado em buscar a maternidade ou o casamento, mas isso deve vir da sua vontade legítima e não de uma sociedade que impõe roteiros pré-estabelecidos para sua vida.

É por isso que o novo filme do herói Thor, ao apresentar Jane Foster dessa maneira, se torna mais do que uma aventura solo do homem salvando a sua amada. Além disso, ao demonstrar maneiras não-heteronormativas de amar da personagem Valquíria e do companheiro do protagonista, Korg, o longa-metragem também acerta. Uma história de amor também pode ser sobre a paternidade ao invés da maternidade, sobre o amor de uma mulher por sua luta pessoal ou o amor de qualquer pessoa que quebra as expectativas heteronormativas. Não espere um príncipe encantado para amar: ame quem você é e quem pode ser. Ame seus sonhos, suas batalhas e, acima de tudo, conte a sua própria história.



Jane Foster como Poderosa Thor nos quadrinhos. Arte de Russel Dauterman

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