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Mulher-Maravilha: “Uma forma de se fazer justiça às mulheres”

Atualizado: 31 de mai. de 2020


“As pessoas que eles silenciaram e oprimiram agora encontram a liberdade por meu intermédio. Eu me torno, neste momento, um juiz implacável de todos aqueles que, por qualquer razão, subjugam outras pessoas. Um clamor de consciência que não será silenciado. Ou emudecido por mentiras. Um espírito da verdade”. 
Mulher-Maravilha em Wonder Woman: Spirit of Truth, 2001 


Capa variante de Wonder Woman #750, por Nicola Scott, uma referência às diversas versões da personagem ao longo das décadas


Os super-heróis sempre estiveram presentes nas produções midiáticas, desde a concepção dos primeiros entre esses personagens. Na DC Comics, por exemplo, uma das maiores e mais consolidadas empresas de quadrinhos, existe um trio de super-heróis que são apresentados pela editora como os seus maiores personagens: Mulher-Maravilha, Superman e Batman. Quando o assunto é a única mulher entre os três, é curioso o fato de que a heroína nascida em uma ilha habitada apenas por mulheres também costuma a ser a única figura feminina fixa nas formações da Liga da Justiça da América (LJA).


A Liga da Justiça é uma equipe formada por personagens muito populares da DC Comics e vendida pela editora como o maior e mais importante grupo de super-heróis de suas publicações. Seja na formação da LJA de Grant Morrison, em 1997, seja na proposta por Paul Dini e Alex Ross, em 2003 (JLA: Liberty and Justice), ou na apresentada na fase dos quadrinhos “Os Novos 52”, em 2011, a Mulher-Maravilha é vista como a única mulher fixa na linha de frente do grupo ou considerada como fundadora da Liga da Justiça.


Na versão brasileira da obra LJA: Nova Ordem Mundial (originalmente, JLA: New World Order), história na qual Grant Morrison reformulou a equipe de super-heróis, a editora responsável pela edição nacional, Eaglemoss, diz no texto de apresentação que “inspirado pelos clássicos da Era de Prata, Morrison se concentrou nos figurões do Universo DC”. Mais adiante, é dito: “Morrison escalou seus heróis como um panteão moderno, baseado na mitologia grega”. Ao longo do texto, portanto, a editora Eaglemoss defende a ideia de que os super-heróis utilizados para compor a equipe – Caçador de Marte, Lanterna Verde, Flash, Aquaman, Superman, Batman e Mulher-Maravilha – são os maiores personagens da editora, comparando-os ainda aos integrantes do panteão de deuses gregos.



À esquerda, a Liga da Justiça em 1997, arte de Howard Porter e John Dell; à direita, a Liga da Justiça em 2011 a 2012, arte de Jim Lee


Beatriz da Costa Pan Chacon, em sua Dissertação de Mestrado para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – “A mulher e a Mulher-Maravilha: uma questão de história, discurso e poder (1941 a 2002)” – apresenta uma perspectiva que condiz com essa construção da personagem. Beatriz levanta o dado de que, em 7 de dezembro de 1941, os Estados Unidos declararam estar em guerra com o Japão, após o ataque à base naval de Pearl Harbor. No mesmo ano, a revista bimestral (dez. 1941/jan. 1942) All-Star Comics, número 8, lançou a Mulher-Maravilha, desenvolvida pelo psicólogo William Moulton Marston, sob o pseudônimo Charles Moulton. Ela acrescenta que a personagem adquiriu um título próprio no mercado dos quadrinhos norte-americanos, após seis meses, embora não fosse a primeira heroína a ser lançada, visto que a Mulher-Gavião surgiu na quinta edição da All-Star Comics. “Contudo, coube a ela, segundo coloca Roberto Guedes, ser ‘...a personagem feminina mais importante dos comic books’...”, ressalta Beatriz Pan Chacon.


Considerando esses fatores, além do contexto de origem da personagem Diana de Themyscira em uma sociedade guerreira matriarcal, as Amazonas, é possível perceber que a DC Comics busca promover a personagem como uma ideologia feminina. Isso é reforçado em suas histórias, tendo como exemplo o arco Deuses e Mortais de George Pérez (Gods and Mortals, 1987). Na trama, além da missão de reformular a personagem para uma nova realidade do Universo DC, o artista busca trabalhar com conceitos como a violência do homem contra a mulher, tramas políticas e a ameaça da guerra. Como uma figura que vive em meio a esses elementos, que possui o deus da guerra, Ares, como um dos seus principais vilões, e criada dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial, a personagem carrega características suficientes para ser um canal de mensagens de sua editora.


Segundo Silvana Seabra Hooper, graduada em História pela UFMG, com mestrado em Sociologia da Cultura, e doutorado em Literatura Comparada/Estudos Literários, os meios de comunicação têm sua influência comprovada por inúmeras pesquisas, desde o início do século XX. Em entrevista, a professora da instituição PUC Minas conta que os veículos comunicativos de massa influenciam mais diretamente pela repetição e pelos recursos. Ao ser questionada sobre o papel da indústria dos quadrinhos na influência da mídia, Silvana diz acreditar que os quadrinhos não são apenas um reflexo do que existe na realidade, mas também produtores de ideias e de interpretações com valores sociais, assim como a literatura e o cinema.


Portanto, sendo a DC Comics uma das duas maiores editoras da indústria dos super-heróis e detentora da figura apontada como a mais importante mulher dos quadrinhos, por estudiosos como Beatriz Pan Chacon, estaria a empresa influenciando a sociedade por meio da Mulher-Maravilha? A professora Silvana Seabra explica que, de acordo com pesquisas, os personagens fictícios se movem no campo da representação e da identificação que os receptores têm com essas criações. “Na minha opinião, a força dos processos identitários, que remetem a Freud, é a mais poderosa para produzir identidade”, considera. Questionada a respeito de personagens da ficção que agregam em suas histórias discussões sociais e políticas, como é o caso da heroína em questão, a docente pontua: “São, obviamente, mais um tipo de produção discursiva, como muitas outras”. Por outro lado, Silvana alega que esses personagens podem sim ser ferramentas eficazes para se combater problemas sociais e promover causas, mas não necessariamente o são.




Capa da coletânea dos dois primeiros anos da fase de George Pérez comandando a revista "Mulher-Maravilha"



Nesta discussão, um ponto importante deve ser levantado: se personagens são capazes de influenciar a cultura pop e o mundo como um todo, eles devem, para isso, transcender o limite da ficção? Para a entrevistada, não: “Um personagem fictício pode desenvolver grande influência sem se tornar nada a mais do que o ficcional”. A posição de Silvana a respeito do assunto pode servir como uma resposta para quem acredita que uma personagem praticamente imortal, com poderes divinos, como é o caso da Mulher-Maravilha, é “ficcional demais” para gerar identificação em mulheres da vida real e tratar de assuntos sociais.


De volta à dissertação de Beatriz Chacon, ela alega que, para William Moulton Marston, criar tal personagem era uma necessidade, tendo o autor obtido êxito em construir a Diana que imaginava. Portanto, Wonder Woman (Mulher-Maravilha) parece não ser uma das poucas heroínas entre majoritários personagens masculinos por mera coincidência. Como define Chacon em sua dissertação, a Mulher-Maravilha consiste em“uma referência forte e digna da mulher e para as mulheres em geral. Um exemplo da força interna e externa, agora exposta por meio da personagem, e das múltiplas capacidades que ele (Marston) reconhecia haver no gênero feminino. Era uma forma de se fazer justiça às mulheres”.



“Ela é um símbolo de força feminina sem igual e acho que é por isso que é tão amada”



Cena da obra Mulher-Maravilha: O Espírito da Verdade, 2001, arte de Alex Ross

Entre os milhões de fãs da personagem Diana de Themyscira, Ana Beatriz Chaves de Assis, 17 anos, relata não ter dúvidas de que ela é utilizada pela DC Comics para promover uma mensagem de paz, liberdade, igualdade e amor. Estudante do Paraná e integrante da equipe administrativa de uma das maiores páginas do Twitter relacionadas à editora, a DC Brasil, Ana enfatiza que Diana é dotada de poder para rivalizar com grandes heróis. “Ela é um símbolo de força feminina sem igual e acho que é por isso que é tão amada”, diz a estudante. “Algumas personagens são criadas apenas para parecerem fortes e outras, como a Mulher-Maravilha, são criadas para serem fortes”.


Não é apenas Ana que defende a importância da personagem. Em 1993, Mike Gold, diretor de desenvolvimento da DC Comics, relatou em um posfácio o processo de construção do arco de histórias em quadrinhos chamado Lendas (Legends, no original, de 1986 a 1987). Após o reboot do Universo DC conhecido como “Crise nas Infinitas Terras”, a empresa buscou uma história que fosse importante e fizesse parte da nova realidade. “Se o propósito de ‘Crise’ era eliminar diversos dos elementos da mitologia da DC, então, o propósito de Lendas deveria ser a criação de novos elementos”, alegou Gold no posfácio. No entanto, mesmo se tratando de uma história maior do que personagens individuais, o diretor da época apontou como um problema um pedido da editora Karen Berger. A heroína de Themyscira estava em reformulação e, por isso, Karen solicitou que ela fosse retirada da saga. “Era impossível fazer um crossover envolvendo toda a DC sem usar a Princesa Amazona, mas nós a retiramos do material desde o início do primeiro capítulo até o meio do último, quando Karen e o roteirista/artista George Pérez já haviam estabelecido uma nova versão da heroína em seu próprio título”.




Mulher-Maravilha, por Terry Dodson


A determinação de Gold em apresentar a personagem em uma saga tão importante para a DC na época, mesmo que com uma participação breve, reforça o pensamento de Ana sobre a Mulher-Maravilha ser a maior personagem feminina dos quadrinhos. Segundo as palavras da estudante, Diana foi uma das primeiras figuras de destaque da cultura pop e talvez a primeira grande personagem feminina de destaque dos quadrinhos. Quando questionada a respeito do período socio-histórico da criação da Princesa Amazona, a entrevistada lembrou que Diana foi criada em uma época relativamente importante para o movimento feminino na sociedade. “Além de ser uma fonte de inspiração que gerou, em si, parte do feminismo como o conhecemos hoje, acho que ela foi uma forte fonte de influência no movimento que se seguiu nas décadas posteriores”.


A estudante também aponta a complexidade, a mitologia e as funcionalidades da heroína como características que não são desenvolvidas em outras personagens. Para Ana, isso pode ser constatado pela necessidade da Marvel, outra grande empresa da indústria dos super-heróis, de desenvolver sua própria Mulher-Maravilha. Em sua avaliação, a concorrente da DC não percebe que uma personagem como a Princesa Amazona não se cria, nem se torna um ícone, em um dia. “O que torna Diana tão única é o fato de que ela representa não só um movimento, mas sim vários e com tanta naturalidade que fica evidente em suas histórias e suas trajetórias”.


Ana Chaves afirma, ainda, acreditar que a personagem seja uma ferramenta eficaz para o combate a problemas sociais, como desigualdade de gêneros, racismo ou xenofobia, por ser uma heroína que prega igualdade. Destaca também a importância da figura da heroína no período da infância: “Ter como símbolo para garotas e garotos uma mulher de atitudes fortes e coração bom faz com que, ao crescerem, eles repliquem suas melhores memórias”.


Mulher-Maravilha e o antagonista Ares, em Deuses e Mortais, 1987, por George Pérez


As considerações da estudante podem ser relacionadas com os trabalhos nos quadrinhos. No material extra da coletânea de histórias de Paul Dini e Alex Ross, “Os Maiores Super-Heróis do Mundo”, há uma breve descrição sobre o tema que a equipe de criação planejou abordar no capítulo focado na Mulher-Maravilha. O centro da narrativa de “Mulher-Maravilha: O Espírito da Verdade” (Wonder Woman: Spirit of Truth, no original, de 2001) seria a predileção do homem pela guerra, mas evoluiu até dar centralidade ao seu papel como embaixadora, lidando com conflitos culturais, diferenças ideológicas e preconceitos.


Ainda segundo o material, a jornada da heroína na trama se transformou numa revelação pessoal: “Nem todos os símbolos de libertação podem ser vistos da forma que se pretende e o modo como são encarados não é o mesmo em toda parte do mundo”. Na história em questão, a personagem encontra rejeição em alguns povos e grupos que tenta ajudar, pois sua missão de paz não é bem-vista por todos. Posteriormente, ela muda a estratégia para seguir com sua tarefa no mundo, enquanto considera a diversidade cultural da humanidade.


Para a entrevistada, Diana transcende o limite da ficção e possui influência na cultura pop e no mundo como um todo. Em sua opinião, toda garota deveria ter alguém para se inspirar e esse alguém deveria ser a Mulher-Maravilha. Ana é incisiva ao caracterizá-la: “Ela reflete seus ideais de paz, amor e justiça em suas falas e posicionamentos. Não é apenas independente, mas também entende a força de amar e ser amada”. Questionada sobre como a personagem afetou sua maneira de ver o mundo, a administradora da página DC Brasil foi categórica: “Somos falhos e não deuses, mas, mesmo assim, temos a capacidade de alcançar justiça e paz, por conta do amor e igualdade. Aprendi com ela a aceitar mais de todas as minhas partes e espero que um dia todos possam”.


Capa variante de Wonder Woman #750, por Jim Lee, retratando três diferentes recortes temporais da heroína e alguns dos personagens pertencentes ao seu universo

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