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Por que o conceito de grandes equipes para representar o mundo nos quadrinhos é falho e excludente?



Não é recente a tentativa das editoras de quadrinhos de super-heróis como a DC ou a Marvel de estabelecer uma grande equipe para representar o mundo, para ser um alicerce de seus universos. Desde a revista Brave and the Bold # 28 (data de capa de março de 1960), por exemplo, heróis como Superman, Mulher-Maravilha, Batman, Lanterna Verde, Aquaman, Caçador de Marte e Flash se reúnem como a famigerada Liga da Justiça.


É importante ressaltar que a intenção por trás das concepções dessas equipes pode sofrer transformações ao longo dos anos. De todo modo, não há sombra de dúvidas de que o viés dos artistas responsáveis pelas histórias e o viés das empresas influenciam a forma como esses grupos de heróis se apresentam e como suas tramas se desenvolvem. Na versão brasileira da obra LJA: Nova Ordem Mundial (originalmente, JLA: New World Order), história na qual Grant Morrison reformulou a equipe de super-heróis, podemos encontrar informações pertinentes que nos dizem muito sobre um dos objetivos da DC com a sua Liga da Justiça.


A editora responsável pela edição nacional de Nova Ordem Mundial, Eaglemoss, diz no texto de apresentação que “inspirado pelos clássicos da Era de Prata, Morrison se concentrou nos figurões do Universo DC”. Depois, é dito: “Morrison escalou seus heróis como um panteão moderno, baseado na mitologia grega”. No decorrer do texto, a Eaglemoss indica que os super-heróis utilizados pelo artista Grant Morrison para compor a equipe – Caçador de Marte, Lanterna Verde, Flash, Aquaman, Superman, Batman e Mulher-Maravilha – são os maiores personagens da editora, comparando-os aos integrantes do panteão de deuses gregos. Quando observamos outros materiais da DC envolvendo a superequipe, a ideia de que a Liga da Justiça é uma reunião dos seus personagens mais importantes é reforçada.



Da esquerda para a direita: Flash, Cyborg, Batman, Mulher-Maravilha e Aquaman; integrantes da equipe no filme Justice League (2017)

Embora diversos personagens da editora tenham feito parte do grupo no decorrer dos anos, aqueles que são considerados como os seus maiores sempre são os grandes pilares da Liga da Justiça. É curioso, no entanto, como essas figuras da ficção possuem pouca diversidade de características. Antes da reinicialização na cronologia da editora em 2011, boa parte dos super-heróis não-caucasianos tiveram participações secundárias no grupo. Desde a década de 60 até 2011, nenhum personagem negro, indígena, oriental ou de outras etnias esteve entre aqueles na linha de frente da equipe, os considerados como os sete grandes heróis da DC.


Após a reinicialização, o herói afro-americano Cyborg substituiu o Caçador de Marte e passou a estar entre personagens como Superman, Mulher-Maravilha, Batman, Lanterna Verde, Aquaman e Flash. Mesmo com essa mudança, no entanto, a variedade étnica permaneceu fraca. Essa questão também pode ser discutida quando o assunto é múltiplas orientações sexuais. Dentre eles, somente a Mulher-Maravilha é trabalhada como não-heterossexual, além de ser a única figura feminina fixa no grupo na grande maioria de suas encarnações. Caso as nacionalidades dos heróis sejam levantadas, outra divergência é ressaltada. A esmagadora maioria desses personagens foram concebidos como naturais dos Estados Unidos e até mesmo aqueles que nasceram em mundos fictícios como o Superman foram criados e representam o estilo de vida norte-americano.


Essas divergências de representações, no entanto, não se limitam ao que é mais facilmente perceptível com esses personagens. Lançada entre 2018 e 2019, a série de quadrinhos Heróis em Crise, escrita por Tom King, apresenta na sua quinta edição um discurso do Superman relacionado ao conflito principal da trama. Embora a declaração dele seja de interesse público mundial, por ser sobre heróis vítimas de uma tragédia, de diferentes nacionalidades, o integrante da Liga da Justiça encerra suas palavras citando a "luta pelo estilo americano". Quando consideramos que o discurso do personagem foi além das vítimas e visou falar sobre todos os heróis do mundo, é no mínimo complicado notar o uso dessa expressão.


Retomando o que foi dito anteriormente sobre o viés dos responsáveis pelas histórias, não estariam os roteiristas, argumentistas, desenhistas e executivos da DC Comics se aproveitando de um discurso de representar o mundo com uma superequipe para promover suas próprias ideologias? As equipes criativas nos quadrinhos e em outros meios midiáticos como o cinema ainda são compostas, majoritariamente, por homens heterossexuais caucasianos e norte-americanos que, em determinados contextos, não saberão trabalhar com temáticas que destoam muito de suas próprias realidades. Para quais mensagens a DC com a Liga da Justiça e a Marvel com os Vingadores estão dando maior espaço e para quais estão dando menos?


Heróis da Liga da Justiça reunidos sob o comando do Superman, em Reino do Amanhã (1996)

É importante destacar que a discussão aqui não é sobre a qualidade das histórias envolvendo essas equipes, mas sobre o quanto é verdadeira ou não a promoção delas como algo que representa e protege o mundo inteiro. Dar espaço a personagens de gêneros, credos, etnias, nacionalidades e sexualidades diferentes não é apenas sobre representatividade, mas também sobre o incentivo à diversidade e inclusão. Como uma equipe de heróis que não colabora com o acesso de grupos marginalizados a posições de poder está simbolizando a humanidade?


Confesso que foi a reportagem publicada em 14 de agosto de 2020 pela Agência Pública, sobre denúncias de crimes sexuais contra crianças promovidas por um mesmo agressor, em Minas Gerais, nos últimos 30 anos, é que me levou a elaborar este artigo. A investigação jornalística foi conduzida, segundo a Agência Pública, por uma equipe de repórteres mulheres que entrevistaram diversas vítimas e outras pessoas importantes para a matéria. "Em quase duas horas de conversa, ela nos ofereceu os docinhos que faz para vender e, entre mulheres, se sentiu segura para contar sua história", diz a reportagem, em determinado trecho. A questão é: seria o mesmo se a equipe fosse composta parcial ou totalmente por homens?


Suponhamos que, em determinada história, a Liga da Justiça precisará lidar com esse tipo de situação. Com exceção da Mulher-Maravilha, uma vítima de violência sexual teria de contar a sua experiência horrível para homens? Se a heroína não estiver disponível, a vítima terá de enfrentar seu desconforto com a situação e o despreparo de homens que jamais poderiam entender o que uma mulher enfrenta com o assédio e a importunação sexual? Esse tipo de situação se repetiria se o problema que os heróis precisassem lidar envolvesse transfobia, homofobia ou racismo, por exemplo. Infelizmente, a violência contra os mais diversos grupos ainda existe e não basta um personagem como o Superman dizer representar a esperança se ele não fala contra essas violências.


A reportagem citada, inclusive, aponta um dado assustador: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, publicado neste ano, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são violentadas sexualmente no país. Não é um tipo de problema que uma equipe que protege o mundo deveria combater? Ou, para as superequipes, os grandes males que afetam a sociedade são apenas invasores alienígenas, deuses malignos e palhaços ensandecidos? Por que as histórias da Liga da Justiça se preocupam tanto com esses enredos e tão pouco com crimes de racismo, homofobia, violência doméstica e sexual? E como eles poderiam estar, de fato, defendendo todo o planeta se seus integrantes não conseguem agregar uma multiplicidade de vozes, experiências e discursos?



Crazy Jane, integrante do elenco de personagens da série Doom Patrol, interpretada por Diane Guerrero

Dar visibilidade a personagens com características variadas permite que dilemas que são vividos apenas por eles tenham voz. Abordar figuras como a heroína Crazy Jane, que sofreu abusos sexuais na infância, pode colaborar para que as possíveis vítimas da vida real entendam que o que sofrem é anormal e que outras pessoas passam por aquilo, mas que há como pedir ajuda. Apresentar personagens homossexuais como o herói Apolo e o anti-herói Meia-Noite, um dos poucos casais LGBTQIA+ da DC, pode ajudar pessoas da vida real a aceitarem melhor sua sexualidade e normalizar a diversidade sexual para reduzir a violência contra a mesma. Valorizar heroínas negras como Vixen, uma modelo de sucesso no mundo dos quadrinhos, pode mostrar a mulheres pretas que devem se orgulhar de sua beleza e lutar por seus espaços desejados. Os exemplos de espaço à diversidade que a DC Comics ou a Marvel podem promover são vastos.


É uma verdade que as equipes criativas e os executivos responsáveis por essas empresas estão percebendo que a inclusão é um fator que se faz necessário. Em 2018, por exemplo, a Liga da Justiça foi reformulada nos quadrinhos e passou a agregar personagens negros como a heroína Kendra Saunders e o Lanterna Verde John Stewart. Porém, as mudanças precisam continuar acontecendo. Quando o conceito é sobre um mundo tão diverso e múltiplo como o nosso, as mais variadas vozes precisam e devem ter seus espaços. Caso contrário, a Justice League ou qualquer outra superequipe que se venda como um defensor da justiça para o mundo inteiro estará apenas defendendo os mesmos seletos grupos que sempre foram privilegiados e que sempre dominaram as narrativas. Se a justiça é para todos, então a Liga também deve ser.



Confira no link a seguir a reportagem da Agência Pública citada, na íntegra: https://apublica.org/2020/08/mulheres-denunciam-serie-de-crimes-sexuais-contra-criancas-em-minas/#Link1

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