Stranger Things é um dos carros-chefe do serviço de streaming da Netflix e, após um considerável tempo de espera do público, sua quarta temporada estreou na última sexta-feira (27/05). Segundo matéria da página Rolling Stone, do site UOL, entre 25 e 27 de maio (pré-estreia e estreia), a quarta temporada contou com 286,79 milhões de horas de visualizações ao redor do mundo. Já a página Stranger Things Brasil, no Twitter, no dia 31, fez uma publicação sobre a nova temporada quebrar o recorde de produção mais vista da história da Netflix em seus três primeiros dias. Segundo a postagem, a série foi vista por mais de 287 milhões de horas entre 27 e 29 de maio. Esses dados indicariam que a série se tornou um dos maiores lançamentos da empresa e eu mesmo já assisti aos episódios disponíveis. A parte 2 da temporada, com os dois últimos episódios, será lançada no dia 1° de julho e indica uma excelente estratégia da Netflix para manter seu produto em relevância na internet por mais tempo.
A minha motivação para produzir este texto, no entanto, foi uma polêmica no Twitter a respeito de pessoas tatuando números como alusão a alguns personagens da série. Em uma breve pesquisa, descobri que essa problemática não é recente. Desde 2016, podemos encontrar publicações na internet sobre o assunto, uma vez que Stranger Things é um sucesso de público desde a sua primeira temporada. Na obra, a personagem Eleven (ou Onze, no Brasil) sofre diversos tipos de abuso como cobaia em experimentos do governo norte-americano e foi marcada no pulso com o número pelo qual é chamada. A questão é que esse recurso não foi inventado pela equipe criativa da série e se trata de uma alusão à numerificação usada em alguns momentos da história, como por exemplo no Holocausto.
Em uma publicação disponível no site Historiofobia, George Trenton, sobrevivente do campo de extermínio em Auschwitz, alegando se basear em documentos obtidos no United States Holocaust Memorial Museum, declarou: “as tatuagens dos sobreviventes passaram a simbolizar a brutalidade dos campos de concentração e a tentativa dos nazistas de desumanizar as suas vítimas. As tatuagens também são um testemunho da resistência daqueles que têm de suportá-las”. Considerando essa informação e encontrando, pela internet, opiniões contrárias e favoráveis ao ato de tatuar números em homenagem à personagem Eleven, eu me deparei com um fato levantado por alguns: as pessoas que sofreram no holocausto foram e são reais, enquanto a Onze é ficcional.
A personagem Eleven, interpretada por Millie Bobby Brown, em cena da quarta temporada
Outro fato é o espaço privilegiado que as obras audiovisuais como Stranger Things possuem em relação a produções visual e sonoramente menos estimulantes. Em uma matéria do Brasil de Fato publicada em 7 de janeiro de 2022, Monica Carvalho, proprietária de uma livraria em São Paulo, disse acreditar que todos nós somos leitores porque lemos placas, posts nas redes sociais e jornais. Porém, ela também declarou que o volume de pessoas que leem livros ainda é baixo. Outra visão sobre o assunto, na matéria, também me soou pertinente: Leticia Bosisio, sócia de uma livraria do Rio de Janeiro, afirmou que o Brasil tem um potencial muito grande para a leitura, mas não há investimento nessa área. O que isso tem de relação com espectadores de uma série considerando se tatuar como homenagem à obra? Inicialmente, talvez nada. Contudo, eu percebo como as pessoas são mais facilmente contagiadas por produções audiovisuais do que por livros, quadrinhos, desenhos e pinturas.
Até mesmo este texto vai exigir, em tese, um esforço maior do espectador caso ele leia a publicação original e não o consuma escutando através do meu podcast. Muitas pessoas deixam de ler grandes reportagens ou livros, mas dedicam horas do seu dia ou semana para assistir a filmes e séries. Músicas lançadas para o mercado são cada vez menores enquanto as danças virais do TikTok são sempre muito breves (e talvez eu possa dizer padronizadas). Personagens esquecidos nos quadrinhos passam a ter mais espaço nas revistas quando suas versões cinematográficas, ou das séries, são bem recebidas pelo público. O que percebo é uma tendência na qual os diferentes nichos do mercado cultural estão se adaptando para oferecer produtos mais sucintos, estimulantes e simples para consumo.
A BBC News Brasil, em uma publicação de 25 de abril de 2019, trouxe informações sobre o trabalho da neurocientista cognitiva Maryanne Wolf. A matéria apontou que, segundo o livro “O Cérebro no Mundo Digital - Os desafios da leitura na nossa era”, o fato de lermos cada vez mais em telas, dispensando o papel, e a prática cada vez mais corriqueira de somente “passar os olhos” em múltiplos textos e postagens online podem estar dilapidando a capacidade humana de compreender argumentos complexos, de analisar criticamente aquilo que lemos e até mesmo de desenvolver empatia por pontos de vista distintos do nosso. Tudo isso viria a ter o potencial de impactar a nossa performance individual no mercado de trabalho, nossas decisões políticas e as interações da vida em sociedade. Portanto, proponho o resgate da polêmica citada no início do texto: as tatuagens em homenagem a Stranger Things. Confira, a seguir, alguns comentários encontrados no Twitter a respeito do assunto. Por uma questão de preservação da identidade dos usuários, todas as informações pessoais foram ocultadas.
Quando alguém busca marcar em seu corpo algo que simboliza aquilo que gosta, essa pessoa está considerando como outras vão perceber e interpretar esse símbolo? Está preparada para opiniões diferentes da sua e será capaz de ouvi-las com empatia ou irá silenciá-las e bloqueá-las como é possível nas redes sociais? Se dispõe a se informar sobre os significados daquele símbolo para além de sua série favorita? Busca compreender a natureza das inspirações desses elementos nas obras ficcionais? O que mais me chamou a atenção nas discussões no Twitter sobre o ato de tatuar números em seu corpo é a maneira como algumas pessoas defendem suas visões. Debates nessa rede social, muitas vezes, são caracterizados por baixa interpretação, falta de leitura crítica e o desejo recorrentemente agressivo de se provar como o lado certo da discussão. E essas características podem ser encontradas em outras diversas situações na internet.
Consumir séries de qualidade como o grande sucesso da Netflix não é um problema, mas as preocupações de acadêmicos como a neurocientista citada são genuínas. A ciência vem explorando, conforme a matéria da BBC News Brasil menciona, o potencial impacto dos hábitos digitais nos indivíduos. Wolf declarou que os jovens estão desenvolvendo impaciência cognitiva e que, ao deixarmos de estar engajados com aquilo que lemos (e acredito que isso possa ser aplicado para tudo o que consumimos de conteúdo e informação), nos afastamos de um entendimento real dos sentimentos e pensamentos do outro. O que fica em meus pensamentos é: já não estamos vivendo isso nos dias de hoje? Se tanto buscamos a tolerância, respeito e compreensão, não deveríamos nos preocupar com uma era que tende a ser cada vez mais superficial e cada vez menos empática? Como queremos priorizar a diversidade e o espaço do outro se, na primeira divergência, não somos capazes de lidar com outras visões? Até que ponto a agilidade e a natureza das redes sociais de silenciar, bloquear são saudáveis? E por fim: quem iremos nos tornar no próximo like?
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