Hera Venenosa: Ciclo de Vida e Morte
- Maicon Epifânio
- 1 de set.
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de set.
Sinopse:
Após um passado de crimes, Hera Venenosa recebe uma oportunidade de recomeço como cientista no Jardim Botânico de Gotham. Ao lado de Luisa Cruz, ela conduz uma pesquisa revolucionária que busca a combinação de DNA vegetal e animal, mas seu novo projeto de vida é abalado pela morte da única pessoa que lhe deu uma nova chance. A Sereia de Gotham tem de lidar com o mistério enquanto os resultados de seus estudos dão frutos inesperados e potencialmente devastadores.

A vida é uma frágil flor que merece ser protegida…
Esta obra é uma das melhores recomendações para quem quer conhecer a verdadeira personagem por trás do mito. Não se trata apenas de representação feminina — o que, por si só, já seria suficientemente relevante —, mas da exploração de temas ligados ao meio ambiente e ética na ciência. Ouso afirmar que são assuntos extremamente banalizados por todos os tipos de mídia, de entretenimento à informação. Portanto, é um mérito válido quando uma obra de ficção consegue democratizá-los.
Ainda que você já conheça a Hera Venenosa, é provável que não esteja entre as primeiras coisas sobre ela que vem à sua mente o fato da ruiva ser uma cientista brilhante. Por décadas de histórias em quadrinhos, Pamela Isley foi retratada de maneira rasa e banal. Um potencial imenso quase sempre desperdiçado como mais uma bandida comum de Gotham roubando bancos.

Como cientista, Pamela sempre foi fascinada pela vida em si. Diferente do que muitos pensam, ela não se tornou uma assassina a quaisquer formas de vida não-vegetais após a transformação. Nesta história, vemos como Hera Venenosa se revolta diante de abusos com formas de vida, algo que a ciência na vida real já fez muito ao longo da história da humanidade. Como uma mulher da ciência, a ruiva não apenas busca respeitar o equilíbrio entre a vida e a morte, como leva em consideração os sentimentos e sensações de cada experimento.
Boa parte dos erros passados dela estão relacionados aos abusos que já sofreu. Por certo ponto de vista, a HQ chega a ser repetitiva com a ideia de que crimes, muitas vezes, são produtos de um meio. O roteiro não tenta amenizar as ações ruins da protagonista, mas traz bons exemplos no decorrer da narrativa de como experiências traumáticas moldam o comportamento e personalidade de alguém.

A discussão ambiental é pouco aprofundada, mas válida. Quase sempre, a preservação ambiental é associada a “papo de pessoas chatas”. Nós damos pouco valor ao desperdício da nossa água ou às queimadas em nossas cidades. É como se preservar fosse um favor, uma caridade opcional para a natureza, mas é o contrário: o planeta está aqui antes e estará depois de nós. O mesmo pode e deve ser dito do elemento da natureza mais importante aqui: a vida vegetal.
Nós prejudicamos a nossa espécie ao desmatar, predar e destruir desenfreadamente. Existe um limite saudável para o uso dos recursos naturais e existe o nível que traz prejuízos para todos, quase sempre associado à obtenção de riquezas de grandes corporações. É neste ponto que o título desta história se justifica: todos os seres vivos estão conectados a um ciclo de vida e morte no planeta Terra. Qualquer mínimo desequilíbrio prejudica todos os envolvidos.

A vida e a morte estão entrelaçados de tal maneira que é impossível uma desassociação. Da mesma maneira que humanos predam para sobreviver, outras formas de vida se mantêm através do consumo de terceiras. Mesmo após a nossa morte, haverá vida de outras formas. Pamela encontra a beleza na vida e no cruzamento de DNA animal com vegetal, mas ao mesmo tempo ela tem de lidar com a morte da única pessoa que confiou em seu trabalho.
Em outras palavras, esta trama é um fenômeno artístico que faz jus ao verdadeiro significado e importância da Hera Venenosa: talvez ela não tenha sido criada com uma intenção tão nobre, mas a personagem se transformou em um símbolo da luta anticorporativista, preservação vegetal e do equilíbrio da vida ao longo das décadas. Aqueles que reclamam do fato da personagem ter se afastado da vilania radical são apenas
pessoas com um olhar fútil e raso — para não usar termo pior.

Ainda assim, afirmar que a Sereia de Gotham carrega tal simbologia não é o mesmo que dizer que ela é perfeita ou que seus métodos são éticos. Pelo contrário, pois o mais divertido na Hera Venenosa é a inversão dos papéis: como seria se as plantas pudessem retribuir aos humanos tudo o que essas formas de vida sofrem desde sempre?
A cientista sente e sofre com as plantas: a dor delas é a sua dor. Logo, na perspectiva da botânica, eliminar empecilhos humanos para suas “irmãs e filhas” é o mesmo que um homem ao matar um animal selvagem que o ataca. Como a própria diz, Hera Venenosa não tolera abusos. Por isso ela agiu no passado contra o Coringa, a favor de Arlequina; ou nesta história contra um dono abusivo, a favor de cães maltratados. Pamela é uma anti-heroína e esta trama prova como isso de fato é a melhor categoria para a meta-humana.

Também há uma mensagem sobre ser “diferente”. Enquanto a Marvel costuma associar perseguição e intolerância mais aos mutantes, a grande maioria dos seres com poderes na DC são hostilizados por parte das pessoas comuns. O texto, de maneira sutil, busca acolher leitores que se sentem tão diferentes a ponto de não encontrarem seu lugar no mundo. Ser diferente torna você alvo daqueles que temem o desconhecido. A Doutora Isley é uma excelente metáfora para isso, visto que até hoje ela é reduzida por muitos como uma vilã genérica.
Aqui, Hera Venenosa é obrigada a cuidar de certas criaturas poderosas, mas inocentes e extremamente reativas. A mínima hostilidade sofrida por elas desequilibra tudo, forçando a botânica a tomar decisões bem distantes da vilania. Sinto que, nesse sentido, faltou do roteiro aprofundar um pouco mais em como a própria Pamela lida com o seu sentimento de ser “diferente”, desencaixada. Uma exploração maior disso poderia tornar a obra ainda mais potente para aqueles que se identificam.

A participação da Arlequina aqui é pontual, mas importante. Sua interação com a Hera Venenosa, diferente do que acontece em outros quadrinhos, não está aqui para enriquecer a palhaça louca da DC, mas para explorar as camadas da botânica. Muitos não gostam de quando Harley aparece em histórias que deveriam focar na Hera Venenosa justamente por isso, mas o roteiro aqui sabe como mostrá-las juntas sem retirar o foco da ruiva.
Inclusive, ouso dizer que a trama não teria apresentado certas camadas da personagem tão bem sem essa interação. Hera não compreende por inteiro os sentimentos humanos por estar mais próxima do seu lado vegetal. Ela não percebe que, ao buscar sair da solidão, fere os sentimentos de quem já está ao seu lado. É através do afastamento de Arlequina que Pamela mergulha na própria solidão ao mesmo tempo em que nos mostra o quão determinada está para recomeçar, deixando seu passado mais vilanesco para trás.

Há outro ponto importante derivado desses aspectos da história: a “crítica” aos fãs de quadrinhos. Tudo no mundo muda, inclusive nós seres humanos. A comunidade nerd, no entanto, raramente está aberta para mudanças em status quo dos personagens nos quadrinhos. A meta-humana que conversa com plantas de fato nasceu como vilã, mas o tempo a transformou. Esta obra é uma oficialização de sua transformação, uma maneira de dizer aos revoltosos que estão errados nessa perspectiva dualista rasa: ninguém é apenas bom ou mau. E devemos acreditar na regeneração de caráter.
Após os elogios, também devemos abordar os pontos que não são tão apreciáveis assim. A arte é boa, mas há certas irregularidades — detalhes que podem passar despercebidos por olhares mais desatentos. Há alguns erros de continuidade: como quando a protagonista se lembra de uma situação de um capítulo anterior, mas o flashback a mostra com um traje diferente do que usou na situação. O roteiro também parece ignorar os poderes de controle por feromônios da personagem, uma conveniência que pode incomodar leitores mais experientes.
O que deveria ser um plot importante, o mistério por trás das mortes, não é tão instigante. A roteirista, aparentemente, não é tão versátil nesse estilo de escrita, pegando o leitor mais pelo carisma dos personagens apresentados do que por promover sua curiosidade. Isso não torna a trama chata, mas também não causa uma vontade relevante em nós para descobrirmos a verdade.

O capítulo 4 é o auge da história, mas depois dele a narrativa cai consideravelmente. A participação da Mulher-Gato faz você querer ler mais deste dueto. O final é o ponto baixo da trama, pouco interessante e com resolução conveniente — outro personagem clássico conectado ao Verde é usado para isso. O mais lamentável é que esta minissérie deu origem a três figuras interessantes, mas que foram praticamente descartadas na cronologia daqui por diante.
Por fim, “Hera Venenosa: Ciclo de Vida e Morte” é um enredo para os desajustados e para quem se sente “diferente”. Muito antes de se tornar meta-humana, Pamela já se sentia desencaixada da sociedade, à parte como algo “estranho”. A importância de abordar isso no entretenimento está em mostrar para os desajustados da vida real que essa não é uma experiência individual: nós não estamos sós; sempre há outros por aí. Cabe a cada um encontrar o seu lugar no mundo, ainda que seja através de uma conexão mística com o Verde — como a nossa protagonista. Faça como Hera Venenosa: conte a sua própria história. Recomendo!

Roteiro: Amy Chu
Arte: Clay Mann, Seth Mann, Sandu Florea, Cliff Richards, Al Barrionuevo, Scott Hanna
Lançamento: 2016
Nota: 4/5
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