Lanterna Verde: Diário de Guerra - Contágio
- Maicon Epifânio

- há 2 dias
- 9 min de leitura
Sinopse:
Os Guardiões de Oa desapareceram e a organização intergaláctica Planetas Unidos passou a controlar a Tropa dos Lanternas Verdes. Nesta nova era, os heróis terráqueos John Stewart e Hal Jordan, cada um por suas próprias razões, deixaram seus postos e decidiram recomeçar na Terra. Enquanto Hal se vê em uma trama envolvendo figuras do seu passado como Carol Ferris e Sinestro, John tem a sua nova vida atravessada por uma terrível ameaça vinda de outro universo: a Rainha Brilhante. Buscando vingança contra o herói, essa temível criatura está disposta a destruir toda a vida no planeta para atingi-lo. Stewart uma vez mais terá de decidir entre a vida simples ao lado de sua mãe doente ou uma jornada heroica que pode definir o futuro de todo o universo.
“Nossos heróis são tão frágeis quanto o resto de nós” - John Stewart, War Journal #5
As edições aqui analisadas são referentes à coletânea “Green Lantern: War Journal - Contagion”: Green Lantern (2023) #1 a #3 e Green Lantern: War Journal #1 a #6

Esta obra abarca as três primeiras edições da fase da revista “Lanterna Verde”, iniciada em 2023 e protagonizada por Hal Jordan; e as seis primeiras edições da série “Lanterna Verde: Diário de Guerra”, protagonizada por John Stewart. Considero um ponto para se refletir o fato da DC optar por colocar o início de uma história focada em um herói negro como um extra de uma trama focada em um herói branco. Não era necessário que a revista regular "Lanterna Verde" usasse Hal Jordan para vender uma narrativa sobre o Jonh Stewart antes de começar a própria série dele. Seria mais orgânico se os enredos ao menos parecessem mais conectados.
Os pontos em comum são que ambos os personagens saíram da Tropa dos Lanternas Verdes e estão recomeçando, além de um breve cameo de Hal Jordan em uma TV no início do primeiro prelúdio da história de John. Para entendermos a estrutura da história “Diário de Guerra”, no entanto, precisamos compreender a escolha editorial da DC de contar o prelúdio dela em extras da história de Hal Jordan. Por isso, ler as três primeiras edições da revista regular do Lanterna Verde foi fundamental.

Enquanto Hal Jordan se consolidou como personagem ao longo das suas primeiras décadas através de uma imagética infantil e cafona — o homem destemido com a maior força de vontade do universo —, Stewart se tornou o grande herói que é após uma jornada densa de erro, amadurecimento e redenção. Portanto, não posso negar que essa escolha editorial de começar a série “Diário de Guerra” dessa maneira parece possuir algum motivo. Talvez, a DC tenha optado por colocar o prelúdio de uma série focada em John como extra do enredo de Hal para promovê-lo justamente pelo contraste entre eles. É possível que a grande popularidade de Jordan tenha dado segurança para a editora apostar em uma história mais leve e reducionista enquanto oferece Stewart como bônus, em uma trama mais densa.
O arco de Hal Jordan
A história de Hal tem charme, mas não tem nada de inovador. Vemos aqui novamente a conexão conturbada entre ele e Carol Ferris, o temperamento impulsivo do piloto e as decisões nada prudentes que ele toma como se fossem sinônimo de força de vontade. Apesar de gostar do herói, sempre achei questionável esse posicionamento da DC Comics de vender a insensatez do mesmo como "sintoma" de uma determinação extraordinária. Como consequência dessa abordagem com ele, a narrativa adota um tom leve e consideravelmente humorístico.

Isso não seria um problema se o contexto da trama fosse compatível. Hal é um dos heróis classe A da DC com a trajetória mais dramática e mergulhada em trevas e culpa — seu passado com Parallax, seu período como Espectro, seus erros com Carol Ferris e por aí vai. Um homem adulto com tantas sombras passadas dificilmente expressaria uma personalidade tão juvenil e imatura. Não é sobre Hal precisar ser amargo na trama, mas sobre sua personalidade apresentada aqui ser incompatível com quem ele é. É como se estivéssemos vendo um herói jovem em início de carreira. A leveza contradiz sua densidade dramática enquanto personagem.
A essa altura, após viver tantas coisas, o que se espera de um herói com bagagem é o mínimo de evolução emocional. Fica ainda mais complicado defender a postura do personagem quando ele se coloca em situações de perigo. O tempo todo, os eventos parecem ser induzidos para os resultados que temos, dispensando a naturalidade para que a imprudência do protagonista seja a salvação do dia e não a fonte de consequências problemáticas. Esse tipo de abordagem, flertando com a mais pura imaturidade, é bastante questionável. O objetivo é resgatar elementos clássicos do personagem, mas deixando de lado toda a sua evolução emocional de décadas de histórias complexas.

Por outro lado, o leitor se sente perdido e sem rumo da mesma forma que o herói. As coisas mudaram na Tropa e ele parece não saber mais quem é sem ser o "Lanterna Verde". Nesse sentido, é parcialmente compreensível que algumas de suas escolhas sejam ruins. A história também consegue nos convencer de que vale a pena seguir na leitura, principalmente pelas camadas emocionais de Jordan aqui apresentadas. Por outro lado, a narrativa seria mais elogiável se não tivesse tanta pressa pra retomar o status quo do herói e explorasse mais profundamente o seu sentimento de "vazio".
Embora a coletânea não abarque mais edições da revista do Lanterna Verde, que completam o arco narrativo de Hal, o que temos aqui é suficiente para perceber um problema: esta fase do Lanterna Verde parece se encaminhar para ser um compilado de bons momentos conectados por uma lógica narrativa frágil e disfuncional. Como público, nós somos marcados por cenas importantes ou interessantes encontradas nessas páginas, mas uma boa história é mais do que isso: é preciso consistência de enredo para que a HQ de um herói clássico não se torne apenas apelo nostálgico. Há deslizes consideráveis tanto na arte quanto no roteiro e o saldo geral deixa a desejar.
O arco de John Stewart

Mais emocional e intimista, o enredo do segundo herói segue uma estrutura narrativa completamente diferente e dividida em dois caminhos que se encontram mais adiante na obra. Enquanto Hal procurava seu lugar no mundo na sua trama, John sabe onde exatamente ele precisa estar: ao lado de sua mãe, acometida pelo Alzheimer. Você entende que ele quer recomeçar de uma maneira muito parecida com Jordan, mas o texto aqui é mais inteligente e menos infantilizado. Há sutileza, comentando coisas simples referentes ao choque que é deixar a vida cósmica para trás e se ver na vida humana comum novamente.
Ao mesmo tempo, em outro universo, a criatura cósmica Rainha Brilhante devasta mundos inteiros antes de invadir a Terra 0 em busca do John Stewart que conhecemos.
O modo como o roteiro consegue resgatar elementos importantes da trajetória do personagem ao mesmo tempo em que o coloca em uma nova vida é excelente. Vê-lo decidido a passar mais tempo com sua mãe após a saúde dela se fragilizar é simbólico. Ainda que tenhamos deveres importantes, não é justo que toda a nossa vida seja consumida pelas obrigações. Quem nos tornamos quando o trabalho se torna tudo o que importa e nossas relações pessoais são deixadas de lado? Um ente querido, ao partir, não volta mais e John está próximo dela para aproveitar enquanto ainda é tempo.

Porém, o filho de Shirley Stewart está entediado com tarefas da vida comum, sempre pensando em como tudo era diferente como Lanterna Verde. Esse aspecto da obra, quando conectado ao nome da série — Diário de Guerra —, se torna ainda mais forte. Quando alguém parte para uma guerra e retorna, sua perspectiva jamais será a mesma de antes. Realizar ou participar de “grandes coisas” faz os pequenos detalhes da vida comum perderem sentido. O herói está onde está por sua mãe, mas obviamente não está feliz. É bonito, mas igualmente angustiante, principalmente quando o leitor é capaz de se identificar por também já ter deixado de se priorizar por alguém que ama. No fim das contas, isso também é heroico, mas não do modo que faz Stewart se sentir vivo de verdade.
Há inteligência e sagacidade no texto como em poucas HQs da atualidade, trabalhando conceitos sobre os personagens através de comentários simples e sutis. Também é através de diálogos que a obra aborda o lado meticuloso e engenhoso de John, sempre dedicado a tudo o que se propõe a fazer. Ele não é um homem que se contenta em fazer o mínimo, mas alguém que quer entender cada mecanismo de um processo para aprender, evoluir e fazer o seu melhor. Essa sua característica tem peso determinante no desfecho da história, mas é apresentada de modo natural, emocional e perspicaz.

É isso o que o torna um grande Lanterna Verde — e não um discurso genérico de “força de vontade inesgotável”, como ocorre com Hal Jordan na revista regular. Sua curiosidade para entender como as coisas funcionam por dentro e sua busca pelo conhecimento, pelo próprio crescimento, são características muito mais humanas e admiráveis. Isso não necessariamente significa que Jordan é um personagem ruim se comparado a John, mas sim que “Diário de Guerra” é uma aula de como retomar elementos clássicos de um personagem sem reduzi-lo a clichês superficiais.
Os momentos de ação quase sempre funcionam como ferramentas de desenvolvimento ou exploração de camadas importantes dos personagens: a soberba do vilão secundário Varron, a natureza confrontativa que sustenta a força de vontade de John e o conceito de corrupção nas habilidades sombrias da Rainha Brilhante. Curiosamente, no entanto, as melhores batalhas não são no final do arco, mas sim no decorrer dele. Há uma em especial que mostra toda a potência que transborda do protagonista. Vê-lo superar o adversário de modo épico enquanto rompe correntes, em sutil referência aos tempos de escravidão, é extraordinário.

Em muitos desses duelos, ao dizer para seus inimigos continuarem falando o que ele não pode fazer, John nos mostra como é um personagem melhor do que Hal na construção da “força de vontade”. A determinação de Stewart não tem como base um discurso vazio sobre determinação, mas resiliência social: uma teimosia audaz para enfrentar todos aqueles que lhe julgam inferior por ódio ou preconceito. E tudo isso sem que a palavra “racismo” ou similar precise ser usada, resultado de uma escrita inteligente que passa uma mensagem sobre força de vontade com John de modo mais consistente e convincente. É como se a editora deixasse claro que os dois personagens estão servindo a propósitos diferentes por escolha criativa: Jordan para um saudosismo despretensioso — tal como a leveza sem profundidade de muitas HQs do Pré-Crise — e John para leitores que preferem tramas mais complexas e tão meticulosas quanto ele.
O auge da publicação, no entanto, não está nos momentos de ação, mas no drama familiar quando John abre seu coração de maneira extremamente emocionante para sua mãe inconsciente. Cada palavra de afeto, o sentimento de dor e admiração, o sofrimento por ter que partir enquanto a doença interfere nas memórias de sua mãe… Tudo é escrito de maneira linda com uma arte maravilhosa. Os detalhes são extraordinários e merecem ser apreciados sem spoilers, mas é possível dizer sem revelar demais que a sequência trabalha de modo extremamente político sem soar antinatural. Afinal, há referências diretas ao período de luta por direitos civis de pessoas negras nos Estados Unidos, quando muitas delas optaram por passar despercebidas pela sociedade e evitar problemas. Sem didatismo, há confiança na interpretação e conhecimento prévio do leitor, algo que nem sempre ocorre na ficção.

Além disso, não é tão comum a cultura pop dar protagonismo a homens negros que se inspiram em figuras femininas e de modo tão brilhante. Na verdade, essa é uma combinação tão rara que teria dificuldades de elencar outra aqui sem uma pesquisa prévia. Uma exaltação à maternidade negra e a identidade do herói negro que tem como alicerce essa figura materna inspiradora.
Ao longo de toda a obra, o filho de Shirley Stewart é humanizado e engrandecido simultaneamente porque suas qualidades são exploradas tanto quanto suas vulnerabilidades. Como um homem negro que chora, mas que também supera obstáculos impossíveis, John Stewart é uma apresentação poderosa do que é ser um homem em uma sociedade que exalta tanto a masculinidade tóxica. Em alguns momentos, movido pelo amor, suas atitudes são equivocadas, mas carregam afeto. A complexidade das situações torna seus erros nada admiráveis, mas compreensíveis: e quem não faria o mesmo que ele se pudesse?

Entretanto, há elementos mal trabalhados na saga do Lanterna negro. Antes do clímax, a trama chega a um ponto no qual não se decide se quer seguir a estrutura de um evento global ou batalha intimista. Ao tentar ser ambos, ela não entrega um bom resultado em nenhum dos sentidos. A sensação é de que a equipe criativa tem excelência para construir personagens e compor uma narrativa ao redor deles, mas falta de tato para desenvolvê-la quando é necessário ir além. A partir daí, o drama em excesso se torna um problema e a ameaça planetária é comprovada visualmente, mas textualmente não.
Apesar de um desfecho morno e de alguns tropeços no caminho no que se refere ao roteiro, “Lanterna Verde: Diário de Guerra - Contágio” é uma poderosa história que humaniza e exalta um dos homens mais fascinantes que já utilizaram o codinome na história da DC Comics. John Stewart erra, chora, mostra sua genialidade e realiza milagres com sua força de vontade de modo natural e convincente. Uma obra política com abordagem sutil nesse sentido, mas extremamente consciente e tocante. Uma narrativa sobre o amor de um filho pela mãe, disposto a tudo pela mulher que o inspirou a ser quem é. E um exemplo ficcional fenomenal de que um grande homem também pode se construir com base em uma grande mulher. Recomendo!

Roteiro: Phillip Kennedy Johnson, Jeremy Adams
Arte: Montos, Xermanico
Lançamento: 2023
Nota: 4/5



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