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Heróis em Crise



O Santuário é um projeto idealizado pela Trindade para conceder a heróis apoio emocional para que pudessem lidar com seus traumas e problemas pessoais. Tudo parece dar errado, no entanto, quando os pacientes aparecem mortos e os únicos suspeitos são os dois sobreviventes: Arlequina e Gladiador Dourado. Porém, a questão é muito mais complexa do que se imagina. Mulher-Maravilha, Superman, Batman e seus aliados estarão na frente de batalha contra algo sombrio. Uma crise que assola todas as mais importantes figuras do Universo DC se instaura e ninguém pode confiar em ninguém. Onde estão as mentiras? E onde está a verdade?


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Heróis em Crise, composta pelas publicações Heroes in Crisis #1 a #9, é uma história de premissa fantástica, execução elaborada e resolução fraca. Isso define o que considero como um dos maiores arcos dos quadrinhos da editora que focaram na exploração psicológica dos heróis. Em outras palavras, o tipo de enredo é muito interessante, executado ao longo dos capítulos de maneira épica, mas a resposta para o grande mistério é difícil de ser bem aceita. Veja bem, não é que se trata de algo mal feito. Talvez a palavra certa seria "inadequado".


Não é a primeira vez que a DC Comics aposta em um grande evento pautado em questões psicológicas dos seus personagens. Crise de Identidade, famosa saga do Pós-Crise, não apenas tinha esse tipo de proposta, evidenciando as fragilidades dos heróis, como carregava no nome uma palavra muito comum para obras de grandes consequências para a cronologia. Graças a esses fatores, em um primeiro momento, é quase impossível um leitor mais experiente não fazer comparações entre as duas histórias.


Por outro lado, quando se trata de leitores inexperientes, Heróis em Crise parece ser uma proposta muito inovadora. E em muitos sentidos, de fato, ela é. Primeiro porque, apesar das similaridades com Crise de Identidade, a proposta inicial dela tem algumas características únicas. A maior de todas elas, certamente, é a presença inusitada de dois personagens que quase nunca são o centro de grandes sagas: Arlequina e Gladiador Dourado. Todos esses fatores servem para atrair a atenção de quem quer que esteja se deparando com a premissa da obra.


Quanto às impressões iniciais sobre o teor da trama, é claro desde o começo que há um mistério complicado para ser resolvido, dilemas pessoais difíceis e muito sofrimento psicológico. A história pode ter um teor pesado para alguns leitores, pois não se propõe a ser pautada na esperança ou em questões banais. Sabe-se desde a primeira página que a ação e os confrontos serão secundários e tudo será consequência do grande segredo que alimenta o enredo. Portanto, há pessoas que vão se agradar e outras não. Como é com qualquer tipo de história. Isso, não necessariamente, diz respeito à qualidade.




O grande problema aqui começa com o recurso usado para explicar o grande mistério. É algo um tanto quanto destoante do restante da história, que seguiu um viés menos fantástico e mais humano. Há diversas declarações interessantes dos personagens, momentos marcantes em que as fragilidades deles são expostas e fazem parte do enredo. Por outro lado, a equipe criativa insere como a resposta de tudo um recurso batido em histórias de super-heróis e que nos faz cair um pouco no envolvimento. Você provavelmente pensa que tudo o que ocorreu até ali era condizente com a nossa realidade e Heróis em Crise seria uma trama melhor se concluísse da mesma maneira.


O que é feito com um dos personagens centrais do conflito pra dar seguimento a essa escolha infeliz também é difícil de engolir. A fragilidade emocional do mesmo, seus dilemas pessoais, mais parecem desculpas ali colocadas para que o mistério fosse respondido daquela exata maneira. Exceto essa escolha, Heróis em Crise poderia ser facilmente uma obra isolada do gênero de super-heróis pra ser exaltada como uma história profunda recomendável para leitores fora desse nicho. Além da resolução e de alguns poucos pontos, a saga não te condiciona a ter um grande conhecimento do Universo DC para compreendê-la devidamente.


Qualquer leitor, seja mais iniciante ou mais experiente, poderá compreender os eventos que acontecem na história, exceto a sofrível resposta de tudo. Porém, Heróis em Crise não perde todos os seus sucessos por causa disso. Pelo contrário, é uma história inteligente que apresenta incontáveis personagens de forma magistral. Cada depoimento, cada confissão, cada sofrimento... Tudo é tão tocante, tão bem apresentado que o discurso da obra de que todos sofrem e todos têm problemas, funciona de fato. Sua compreensão será favorecida se entender, pelo menos, o que foi a iniciativa "Renascimento".




Afinal, todos os dias, eles enfrentam batalhas, sofrem ferimentos físicos e psicológicos, mas não podem se dar por vencidos ou admitir que estão sofrendo também. Ao ler a trama, me identifiquei por questões pessoais, por saber que muitas das vezes nós temos de ocultar nossas inseguranças e dores por razões parecidas. Quando você é o porto-seguro das pessoas, quando é quem é procurado pra ajudar, quem é procurado pra aconselhar e guiar, parece não ser direito seu cair. Heróis em Crise existe para dizer que está tudo bem quando você precisa de repouso e paz também.


Arlequina e Gladiador Dourado são os maiores acertos desta HQ. Poucas histórias os exploram tão bem e não caem na mesmice de usar apenas os clichês batidos com ambos. O roteiro tem a delicadeza de evidenciar temas que raramente são abordados em histórias comuns, não apenas envolvendo esses dois, como diversos outros personagens. O imaginário de deuses perfeitos e inabaláveis é desconstruído aqui e isso acontece até mesmo com os integrantes da Trindade, idealizadores do projeto do Santuário.


Ainda assim, é necessário lembrar que a história pode ativar gatilhos perigosos para alguns leitores. Por tocar em questões como violência física e emocional em relacionamentos abusivos, medo da solidão, perdas de entes queridos, transtorno pós-traumático e outros pontos delicados, Heróis em Crise não é recomendável para qualquer pessoa. Ainda que ela não seja exatamente uma história mergulhada em escuridão e com um tom angustiante, os tópicos tocados podem ser inquietantes para alguns.




Isso nos leva, por outro lado, a outro grande acerto da história. Heróis em Crise não tenta, como algumas tramas dentro e fora dos quadrinhos, ser obscura demais para ser levada a sério. Ser sombrio não é sinônimo de ser adulto e por mais que as fragilidades e traumas sejam questões não muito simples aqui, pouco recomendáveis para crianças, isso não determina todo o teor da saga. Há diversos momentos de mais bom humor, mais leveza e até momentos felizes e de esperança. O arco justamente fala essa dualidade da vida e sobre como momentos bons e ruins coexistem.


Seria muito fácil se render ao contexto caótico que domina muitas histórias sobre dilemas psicológicos, mas Heróis em Crise mantém sua personalidade contando para seus leitores questões que podem dizer muito sobre nós ou sobre pessoas que conhecemos. Os sofrimentos, os dilemas pessoais não eliminam nossos momentos de felicidade ou nossos laços com quem nos ama por quem somos. A HQ segue dessa maneira, sem o interesse de cair em clichês nesse sentido. Como dito anteriormente, é uma pena que a escolha para a resposta do mistério tenha sido tão fora da curve em relação ao grandioso trabalho que estava sendo feito.


A arte é algo que me agrada muito. Para os meus olhos, os cenários são muito bem apresentados, as cenas são claras e nada confusas e os personagens são lindos. Sim, lindos. Tanto homens quanto mulheres possuem seus traços físicos ressaltados ao ponto de muitos serem atraentes ao olhar sem uma sexualização ofensiva. Para alguns, por outro lado, alguns momentos podem ser incômodos, mas como o traço do artista principal busca maior realidade e condizer com corpos de heróis em constante treinamentos físicos e batalhas, julgo ser algo tolerável e compreensível.


Heróis em Crise foi menos do que poderia ter sido, mas muito mais do que boa parte dos quadrinhos dos dias de hoje. Seus erros não apagam os incríveis acertos que alcança e, ainda que a resolução a jogue para baixo, permanece sendo uma leitura que acrescenta. Não é uma mera aventura clichê ou uma sequência de batalhas vazias. Trata-se de um estudo sobre a psiquê de personagens que, muitas das vezes, não recebem esse tipo de espaço. Um ponto de reflexão para todos nós, sobre nossos medos, inseguranças e nossas esperanças.







Roteiro: Tom King

Arte: Clay Mann, Mitch Gerads

Lançamento: 2018/2019

Nota: 4/5

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