Jessica Jones: Ponto Cego
- Maicon Epifânio
- há 4 dias
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Atualizado: há 1 dia
Sinopse:
Jessica Jones, a ex-heroína Safira e atual detetive particular, está vivendo um dia comum como qualquer outro até se deparar com um corpo em seu escritório. Arremessada em uma trama sinistra, ela eventualmente descobre que o mistério está relacionado a um caso fracassado do seu passado. Logo, Jessica não apenas precisa encontrar a verdade, mas também proteger a própria vida enquanto um assassino misterioso está alvejando diferentes mulheres com fortes personalidades. Será a detetive mais quebrada da Marvel capaz de solucionar esse perigoso enigma?

A culpa e o fracasso são as grandes tônicas dessa história. O fracasso, por sua vez, não é um tema recorrente no universo de histórias de super-heróis. Bem, espero que não me interprete mal: não estou falando que heróis não lidam com o peso de suas falhas de forma corriqueira nas suas tramas, mas sim que quase sempre a mensagem é de esperança ou superação no fim do dia.
Mesmo em seus momentos mais sombrios, o Homem-Aranha, a Mulher-Maravilha e o Superman eventualmente retornam a uma caminhada mais luminosa e inspiradora. Eles sofrem, eles lutam e às vezes perdem, mas sempre se reerguem e seguem em frente. Nem sempre heróis como eles conquistam seus objetivos, mas seguem batalhando pela jornada heroica. Jessica Jones é uma personagem totalmente diferente disso e esta trama já começa ciente disso.

Poucos sabem, mas a personagem iniciou sua jornada nos quadrinhos da Marvel como uma super-heroína que se inspirou no Homem-Aranha. Com o codinome de Safira, ela atuou nessa “carreira” por um tempo, mas é engraçado como a própria trama aqui analisada brinca com o fracasso dessa sua empreitada. Poucos, dentro e fora do universo fictício da Marvel, se lembram de Jessica como Safira. Esse foi um dos seus mais absolutos fracassos.
É por isso que essa personagem é interessante. Em um universo de super-heróis e seres fantásticos que assumem codinomes chamativos e trajes bregas, a detetive desistiu de ser mais do que apenas “Jessica Jones”. Ela é um fracasso nesse sentido, em um mundo no qual até mesmo os personagens mais inusitados conquistaram algum espaço e reconhecimento com seu próprio codinome e identidade heroica (ou vilanesca). Ao aceitar esse lado que quase todos, na ficção e na realidade, tentam enterrar… Jessica se torna identificável.

Por um lado, essa identificação é “restrita”. A imensa maioria das pessoas não quer aceitar o fracasso como parte de si. Elas se afastam de conteúdos que as lembram disso justamente pela rejeição à possibilidade de se encontrarem ali. Um quadrinho “comum” de herói existe para te inspirar no fim da história, mas uma trama com personagens como a “fracassada que tentou ser super-heroína” existe para te fazer aprender a lidar com as suas falhas mais amargas. Apesar do afastamento intencional de muitos, ao mesmo tempo é isso que torna a protagonista mais próxima daqueles que decidiram abraçar suas próprias sombras.
A autora, inteligentemente, usa o ponto de partida do fracasso para tocar no que é uma ferida para muitos de nós: nossas perdas são circunstâncias da vida ou merecemos a nossa própria miséria? Quem nunca se deparou com um discurso meritocrático de que somos fruto de nossas escolhas? Jessica é o tipo de personagem que se tornou consequência dos seus traumas, mas pessoas assim são constantemente culpabilizadas por suas vulnerabilidades na sociedade.

É comum uma mulher ser culpada pelo relacionamento abusivo em que entrou, um artista malsucedido pelo reconhecimento que não alcançou ou um portador de depressão pela vulnerabilidade que o levou a uma tentativa de autoextermínio. Todos os dias, diversas pessoas escolhem o silêncio por acreditarem que sequer merecem compartilhar ou por temerem novas críticas. Nesta obra, a autora mergulha nessa camada trágica de Jessica, indo a fundo no quão difícil foi pra ela aprender a se achar digna de pequenas felicidades.
Quando você está habituado ao sofrimento, momentos de alegria quase sempre parecem apenas garantia de que tudo vai desandar. A narração da protagonista nos revelando esses detalhes de sua psiquê é forte, principalmente para aqueles que se identificam com sua personalidade pessimista. Esse tipo de perfil é construído ao longo de anos de traumas e dor, mas é julgado socialmente como parte de uma escolha e não de uma “sina”.

Mudar é difícil, às vezes quase impossível. Sem uma rede de apoio, vencer a própria escuridão pode ser mais difícil do que derrotar um supervilão. Os personagens que frequentam a vida de Jessica aqui funcionam como essa rede, como uma lembrança de que nós podemos e devemos contar com os outros para vencermos — ou tentarmos — nossos fantasmas do passado.
Apesar de suas sombras, a nossa protagonista mantém aqui a sua típica personalidade sarcástica e provocativa. Ouso dizer que esse é um dos maiores charmes na personagem que o roteiro sabe explorar muito bem. Há aqueles que escondem suas dores através de uma postura rígida, outros usando constantes ofensivas àqueles ao seu redor. Já Jéssica opta por ironizar seus próprios destinos, amenizando o tom de momentos que, na prática, deveriam ser assustadores.

Outro tema regular neste enredo é a misoginia e a violência de gênero. Sem tornar o clima pesado demais, a obra usa de elementos típicos de histórias comuns de entretenimento para abordar essa temática extremamente relevante. Sem nenhum tipo de panfletagem — para já desarmar quem acha que tudo hoje em dia é “cultura woke” —, Kelly Thompson dá uma aula de como retratar a realidade típica da mulher em uma sociedade machista: de homens que partem para toques invasivos e ofensas ao receber um não até a crueldade de relacionamentos violentos.
Também há uma mensagem poderosa sobre aprender a lidar com os seus demônios internos. A fantasia de extrair tudo de ruim em você e jogar fora é tentadora, mas para onde iria o “nosso mal”? Devemos aprender a conviver com a luz e as sombras em nosso interior e, dessa forma, evoluirmos enquanto seres de contrastes. É preciso aprender a natureza dos seus erros para seguir adiante e não simplesmente tentar apagá-los. A trama poderia se concluir de maneira utópica, mas prefere um desfecho que ensina.

Já sobre a narrativa principal, o que inicialmente parece um caso envolvendo Jessica Jones e seus laços logo evolui para algo maior. O mistério cresce gradualmente, instigando o interesse do leitor. Aqui Kelly Thompson prova o quão hábil é em manter o público engajado e envolvido com suas tramas, fazendo das participações de outras figuras da Marvel apenas detalhes a mais e não fanservices baratos de um enredo sem o próprio sustento.
O capítulo final é o ponto baixo da história, visto que o fio condutor do enredo chega ao seu desfecho no capítulo 5. O 6 serve como uma maneira mais leve de mostrar como Jessica Jones lida com suas vulnerabilidades e o quanto tenta escondê-las, mesmo perto daqueles que ama e confia. Não é uma leitura ruim, mas quebra um pouco o clima e dá a sensação de um encerramento bem abaixo da média da obra completa.
Por fim, se você gosta de tramas menos “heroicas”, com o uso temperado de superpoderes, essa é a pedida ideal. Além de tudo argumentado acima, mesmo com a presença de figuras carimbadas do Universo Marvel, esta HQ é mais sobre dilemas humanos do que questões de super-humanos. O desempenho da arte também acompanha a qualidade do roteiro com primor. Jessica é apenas uma mulher que sabe das próprias falhas, mas que tenta levar a vida adiante com a vocação que julga ser sua. Através da investigação dela, somos apresentados a questões difíceis que infelizmente são realistas o suficiente para acontecer com quem menos esperamos. Recomendo!

Roteiro: Kelly Thompson
Arte: Mattia de Iulis, Marcio Takara
Lançamento: 2018
Nota: 5/5
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